segunda-feira, 24 de junho de 2013

Máscaras, bandeiras e poder


João Francisco do Canto


“Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
(...) Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara”.
Fernando Pessoa

As manifestações ocorridas nos mais diferentes locais do país trouxeram um pouco de alento àqueles que, desiludidos com a política e com os políticos, acreditaram que o brasileiro saiu da inércia às ruas. Vários fatores contribuíram para que as pessoas se sentissem motivadas a participar dos protestos ocorridos de norte a sul do país: o aumento de tarifas do transporte público, o descaso com a educação e com a saúde públicas, a corrupção, o nepotismo, o patrimonialismo e tantos outros problemas que há muito estavam atravessados na garganta de cada brasileira e brasileiro. O povo, finalmente, rompeu, mais uma vez, a cultura do silêncio e ganhou as ruas. Os jovens tiveram um papel primordial para que as manifestações fossem exitosas. Através das redes sociais e de grupos de relacionamento, mobilizaram-se para uma coisa até então inédita em suas vidas.



A cobertura feita pela mídia hegemônica evidenciava a tradicional tentativa de criminalizar os movimentos sociais, referiam-se aos jovens repetidas vezes como “vândalos”, “baderneiros”, ao contrário das notícias em relação a manifestações ocorridas no continente europeu, ocasião em que se referiam aos jovens como “ativistas”, “manifestantes” e outras expressões que não tinham a conotação pejorativa aqui usada, ainda que lá também víssemos excessos e atitudes parecidas com as que ocorreram aqui. Com a adesão cada vez maior de pessoas às manifestações, a mídia comercial foi obrigada a rever o seu discurso preconceituoso e autoritário, mas, obviamente, procurou dar o tom do movimento, dando dicas de como se comportar e até mesmo de como se vestir nas manifestações, pitorescamente recorrendo a uma consultora de moda. Na onda das manifestações, comerciantes aproveitaram para vender o “Kit protesto”.

O país passa a viver um novo momento, muitos compararam tudo o que estávamos vivendo a décadas passadas, quando o povo saiu às ruas para reivindicar direitos e exercer sua cidadania. Vivemos um momento de mobilização sem igual, após anos de neoliberalismo e da implantação de uma filosofia do “salve-se quem puder”. Entretanto, algumas ponderações se fazem necessárias a fim de que possamos compreender de uma maneira mais ampla o complexo momento vivido.

Sthéphane Hessel, no livro Indignai-vos!, lembra-nos de que o interesse geral deve sobrepujar o particular, a justa divisão das riquezas criadas pelo mundo do trabalho deve primar sobre o poder do dinheiro.

Entretanto, em tempos de ditadura internacional dos mercados financeiros, o que se verifica é exatamente o contrário. Os interesses de grupos econômicos prevalecem sobre os da sociedade. A promiscuidade entre o público e privado, principalmente no estado do Rio de Janeiro, é algo assustador. Poderíamos citar vários exemplos, mas o mais emblemático é o caso do Maracanã: o Estado gastou cerca de 1,7 bilhão de reais e teria de volta com a privatização cerca de 12% desse valor para receber em 33 anos. E o que dizer do estúdio panorâmico da Globo em um dos prédios da UERJ e dos convênios firmados com empresas privadas para a área de educação, saúde e segurança? O que dizer das terceirizações e da precarização dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores? Os motivos para que nos indignemos são muitos.

Diante da reação a tantas formas de exploração das pessoas e do uso indevido do dinheiro público, todos ficamos esperançosos com um tempo de possibilidades que se inaugura. Entretanto, há que se cuidar para que toda essa energia acumulada e esse grito atravessado na garganta não sejam apropriados por quem sempre usou a população para que os seus interesses imediatos fossem satisfeitos.

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, lembra-nos de que no vácuo deixado atrás de si por cidadãos que se retiraram em massa dos campos de batalhas políticas da atualidade para reencarnarem como consumidores é preenchido por um “ativismo de consumo” aparentemente apartidário e um tanto apolítico. A rejeição dos jovens às bandeiras dos diversos partidos políticos progressistas deixa claro o desencanto com a política partidária. A contradição, todavia, está posta. Reivindica-se liberdade de expressão, mas o outro é reprimido em seu direito. O argumento utilizado é o de que não querem que os políticos usem as manifestações para se projetarem sem a percepção clara de que muitos políticos conservadores e que veículos da mídia hegemônica já estão tirando proveito das insatisfações e anseios da população. As máscaras, as mesmas usadas no Occupy Wall Street, em que pese a falta de originalidade, ocultam identidades e reforçam a concepção de mundo avessa a partidos. As ações de jovens sem rostos e a truculência contra outros jovens que externavam a sua forma de ver o mundo ao carregar bandeiras que sempre estiverem presentes em outros momentos da história revelavam a ausência de uma reflexão mais profunda.

A truculência da polícia em São Paulo só não foi pior do que a liminar que o estado de Minas Gerais conseguiu para que não houvesse nenhum tipo de manifestação durante a Copa das Confederações. Os dois episódios evidenciam que ainda convivemos com resquícios de autoritarismo. As sequelas de uma mentalidade autoritária e patrulhadora ficam evidentes aos lermos cartazes com questionamentos acerca da orientação sexual de autoridades. A violência simbólica¹ esteve presente em alguns protestos. Em Nova Friburgo não foi diferente, um jovem repórter foi alvo de xingamentos em que a tônica seria a sua orientação sexual. Tudo isso evidencia que estamos vivendo um momento rico e perigoso. Após anos sem debate e sem que refletíssemos acerca da sociedade que queremos, é fundamental que façamos um amplo trabalho de resgate do diálogo com as diferenças. Mais uma vez recorro a Bauman que nos diz:

“Com toda certeza, o diálogo é uma arte difícil. Significa entrar numa conversa com a intenção de esclarecer as questões em conjunto, em vez de impor sua própria maneira de vê-las; multiplicar as vozes em vez de reduzir seu número; de ampliar o leque de possibilidades em vez de buscar um consenso no atacado (essa relíquia dos sonhos monoteístas despida da coerção politicamente incorreta); de buscar em conjunto a compreensão, em vez de ter como objeto a derrota do outro; e, em geral, ser estimulado pelo desejo de fazer a conversa prosseguir, e não de interrompê-la em definitivo”.

A população, nas ruas, mandou um recado aos políticos, mas as manifestações nas ruas devem ser acompanhadas das manifestações nas urnas. Não adiantaria, se depois de todo esse movimento, votássemos nas velhas práticas políticas consolidadas e que reforçam tudo aquilo que deixamos claro repudiar. O fisiologismo político, o personalismo, a construção de mitos, o oportunismo daqueles que aproveitam o movimento do povo para defender atitudes golpistas que desrespeitam o estado democrático de direito devem ser execrados. É imprescindível que a mobilização do povo na defesa dos seus direitos seja uma constante e que movimentos não se restrinjam a um modismo passageiro.

Nova Friburgo talvez não tivesse passado por tudo o que passou se logo após a tragédia milhares de pessoas fossem às ruas, como agora, para protestar contra os desvios de verbas federais e o descaso dos políticos locais com a sofrida população. As tarifas de ônibus talvez não aumentassem, se na época, a manifestação não contasse apenas com cerca de vinte pessoas (algumas das quais com bandeiras de seus partidos políticos). Enfim, não podemos perder o foco das reivindicações.

Para que não nos transformemos em “ativistas de consumo”, é mister que pensemos em quem ganha com a desqualificação da política e dos políticos. É necessário, ainda, fazermos uma análise honesta acerca da corrupção, que não surgiu nos últimos dez anos de nossa história e que nem é fruto de um único partido político, mas que está entranhada em mentes e instituições.

Lutemos por uma sociedade plural, polifônica, em que todos tenham real liberdade de expressão e em que a mídia hegemônica não paute o nosso debate, impondo a sua visão de mundo, subestimando a população e criminalizando a pobreza e os movimentos sociais. Os políticos devem perceber que o povo está atento e que, portanto, eles devem sair da zona de conforto. O povo, por sua vez, deve ter a clareza necessária para que seus sonhos e anseios não sejam manipulados por aqueles que historicamente sempre exploraram e contribuíram para que o abismo entre pobres e ricos fosse construído.

João Francisco do Canto – Professor das redes pública e particular com formação em Ciências Sociais e especialização em Psicopedagogia e Gestão da Educação Pública pela UFJF.


REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

________________. Danos Colaterais: desigualdades sociais numa era global. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

HESSEL, Stéphane. Indignai-vos! Rio de Janeiro: Leya, 2011.